quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Mapa mundial da (falta de) saúde

 

Fonte: CIÊNCIA SAÚDE em http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/300/mapa-mundial-da-falta-de-saude

Levantamento mundial mapeou principais doenças e fatores de risco que assolam a humanidade. Os resultados vão contra os números divulgados pela Organização Mundial de Saúde e mostram cenário preocupante.

Por: Cássio Leite Vieira

Publicado em 14/02/2013 | Atualizado em 14/02/2013

Mapa mundial da (falta de) saúde

O levantamento identificou 291 doenças e traumas; 67 fatores de riscos e 1.160 sequelas não fatais pelo mundo.
(imagem: Luiz Baltar)

Acaba de ser lançado levantamento tido como o mais amplo estudo da história paradescrever as causas e a distribuição de doenças, traumas e fatores de risco do mundo. Isso (obviamente) é bom. E isso se mostrou (inesperadamente) ruim.

O chamado GBD 2010 (que poderia ser traduzido, do inglês, como Estudo do Ônus Global das Doenças) chegou causando impacto. Seus defensores alegam, comentusiasmo rotundo, que não há nada semelhante – nem de perto – em abrangência e profundidade na área de epidemiologia. Já os que se sentiram desconfortáveis com o oceano de dados apresentados alegam que os autores não primaram pela transparência. Pior: os números do estudo vão de encontro a outros – bem aceitos –, vindos, por exemplo, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Há, certamente, um atrito político entre as partes. E isso era de se esperar, diante dedados tão amplos. Parte da polêmica está relatada em reportagem de Jon Cohen. A controvérsia parece ter começado quando o IHME (sigla, em inglês, para algo como Instituto para a Avaliação e Métrica da Saúde), que centraliza os trabalhos do GBD 2010, resolveu adiantar fração dos resultados. E estes contrastavam (muito) com os númerosda OMS.

Lançado o estudo, o relacionamento entre o IHME e a OMS desandou com mais intensidade. Esta última soltou nota aconselhando seus membros a não se envolveremcom o GBD 2010. A troca de acusações levou o líder dos trabalhos, Christopher Murray, a dizer, à Science, que “burocratas não fazem inovação na área de estatística. Pesquisadores fazem”.

Os críticos dizem que os métodos do IHME, ligado à Universidade de Washington (EUA), são obscuros e complexos. Mesmo colaboradores chegaram a discordar dos números finais. Agora, as farpas parecem estar perdendo as pontas: IHME e OMS resolveram marcar reunião conjunta, prevista para ocorrer este mês, para discutir consensos ediscordâncias. Esse tipo de radiografia da saúde planetária teve origem em 1990.

Os números edados do estudo são colossais: 291doenças e traumas; 67 fatoresde riscos, 1.160 sequelas (não fatais)

O GBD 2010 recebeu adjetivos elogiosos,como sobre-humano, magistral, inigualável, intenso, desafiador etc. Uma das razões: os números e dados do estudo são colossais: 291 doenças e traumas; 67 fatores de riscos, 1.160 sequelas (não fatais). Apontou que,desse total, cerca de 50 ‘vilões’ respondem por quase 80% dos problemas mundiais de saúde. O estudo está dividido em 21 regiões globais, 20 faixas etárias, cobrindo 187 países (inclusive o Brasil).

Epítetos não tão elegantes também foram lançados contra o estudo. Dois deles: impenetrável e obscuro. Deveras. O tratamento estatístico é tão complexo que mesmo especialistas dizem não entender como brotaram os resultados. O GBD 2010 chegou a ser denominado caixa-preta. Esmiuçando: algo que não se pode (re)analisar de forma independente.

O GBD 2010 inclui oito artigos. Ocupam quase 200 páginas da revista, que foi obrigada a imprimir a maior edição de sua história. Número de instituições participantes: 302. Pesquisadores: 486, de 50 países. Os autores analisaram e resumiram número gigantesco de dados e trabalhos (publicados ou não). Boa fatia do financiamento para essa tarefa hercúlea veio da Fundação Bill e Melinda Gates, que despejou 105 milhõesde dólares (cerca de R$ 210 milhões) na empreitada.

Cenários e números

Primeiramente, o grosso do grosso: segundo o GBD 2010, morrem, por ano, 52 milhões de pessoas no mundo – bem, a OMS diz que são 56 milhões. Outros dados planetários: diminuiu a morte de crianças com menos de cinco anos de idade; aumentaram os casos de transtornos mentais e de dor nas costas; vêm diminuindo os casos de malária e diarreia; caíram drasticamente mortes por tuberculose, mas aumentou o número de casos.

Segundo o GBD 2010, a Aids, como causa de morte, passou de 35º lugar (1990) para 6º (2010). Houve aumento de 44%, de 1970 para cá, no número de mortes de adultos entre 15 e 49 anos, sendo culpados, em parte, a violência e a Aids. Obesidade e diabetes também vêm crescendo – décadas atrás, havia pouca comida saudável; agora, hácomida em excesso, mas ela não é saudável.

Em 1990, os três principais problemas de saúde no mundo eram, na ordem, infecção respiratória, diarreia e nascimento prematuro. Em 2010, eles são doenças cardíacas, infecção respiratória e derrame. Nestes 20 anos, saíram da tabela dos 12 maiores problemas mundiais de saúde a tuberculose e a desnutrição, e entraram para a lista o HIV e os transtornos da depressão.

Em relação aos 12 maiores riscos – ou seja, fatores que causaram as maiores ‘perdasde saúde’ e não necessariamente o maior número de mortes –, em 1990, as três primeiras colocações eram, respectivamente, subnutrição infantil, poluição domésticado ar (por conta das cozinhas) e tabagismo. Em 2010, os três vilões: pressão alta, tabagismo e alcoolismo. Saíram dessa lista: falta de amamentação e alto índice de massa corporal (presentes em 1990) e entraram (na de 2010) sedentarismo e – dado que causa espécie – baixo consumo de sementes e castanhas.

Fatores de risco
Encabeçam a lista dos fatores de risco – que causam as maiores perdas de saúde – a pressão alta, o tabagismo e o alcoolismo.
O sedentarismo também está no ranking. (fotos: Sxc.hu/ Karen Barefoot, Konstanty Paluchowski, engindeniz)

A África subsaariana contrastou bastante com outras regiões do mundo: muitos dos riscos e problemas da década de 1990, como subnutrição, poluição do ar doméstico e amamentação insuficiente, persistem lá como causas de morte.

Ironias e paradoxos

O resumo do GBD 2010, como apresentado em um comunicado de imprensa, é bem sintomático: os avanços da saúde mundial nos brindam com uma ironia devastadora: mais crianças estão chegando à fase adulta e, como adultos, estão vivendo mais; porém, mais doentes. Outro modo de ver a questão: o ônus da saúde está cada vez mais se definindo como aquilo que nos faz doentes do que como aquilo que nos mata.

“O GBD 2010 é muito importante, porque utiliza indicadores que complementam os estudos de mortalidade e morbidade que são mais comumente [empregados], auxiliando na elaboração de um quadro mais detalhado da situação de saúde das populações. Principalmente numa época em que estamos observando o aumento da expectativa de vida das pessoas, é importante avaliar a qualidade desses anos de vida que estão sendo acrescentados. A metodologia utilizada no GBD 2010 permite exatamente avaliar essa situação”, disse à CH Jarbas Barbosa, secretário de vigilância em saúde do Ministério da Saúde.

Mais crianças estão chegando à fase adulta e, como adultos, estão vivendo mais; porém, maisdoentes

A assessoria do GBD 2010 preparou, para aCH, um extrato do estudo relativo ao Brasil. Nele, o país se revela como é: misto de Primeiro e Quarto Mundos. Dois destaques: i) o país teve “sucesso excelente” em reduzir a mortalidade de crianças abaixo de cinco anosde idade (média global, 58% de redução; por aqui, 84,5%); ii) na chamada América Latina Tropical – que inclui o Brasil –, a violência interpessoal é ainda um problema seríssimo ligado à incapacitação e à morte prematura de homens entre 15 e 40 anos de idade.

Espera-se que o estudo sirva como um guia geral para administradores da área de saúde, orientando onde, como e quanto investir. Nas palavras de uma entusiasta, o GBD 2010 é bem mais do que números, gráficos e tabelas que dão um instantâneo da situação mundial. O estudo é importante por apontar direções e tendências, ou seja, para onde a saúde (ou a falta dela) no mundo estão caminhando. Uma dessas tendências: tem sido feito um bom trabalho contra as doenças infecciosas, mas agora a população sofre cada vez mais com dor e problemas de mobilidade. Ao todo, o estudo gerou impressionantes 650 milhões de estimativas para os desafios globais da saúde.

No entanto, a maior contribuição que o GBD 2010 poderia dar à saúde global neste momento talvez seja o acalorado debate que promete ocorrer em torno de seus métodos e resultados. E os avanços que daí virão.


Cássio Leite Vieira

Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 300 (janeiro e fevereiro de 2013).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Encontre-nos no Facebook