segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

CRACK: internação compulsória é tentativa de 'faxina social'

 

Fonte: SÉCULO DIÁRIO em http://seculodiario.com/exibir.php?id=4768

O psicólogo Felipe Rafael Kosloski compara a internação à força dos dependentes com os doentes de hanseniáse

02/02/2013 18:37 - Atualizado em 03/02/2013 09:46

Lívia Francez
Fotos: MarceloCamargo/Abr

Desde que a população em situação de rua – principalmente aquela parcela dependente de crack – passou a se instalar em zonas mais abastadas das cidades, a sociedade passou a cobrar soluções para que essas pessoas fossem retiradas dos locais, mesmo que nenhuma solução para o vício, moradia e promoção da dignidade sejam apresentadas pelo poder público aos usuários.

De fato não é agradável para ninguém se deparar com dependentes esquálidos que lembram "zumbis" de filme de terror. Alguns se sentem culpados, outros amedrontados, e os menos tolerantes revoltados. Apesar do problema, de alguma maneira, constranger a todos, não é justo promover uma simplesmente uma "faxina social" para se ver livre dessas pessoas.

A presença crescente dessa população de viciados levou o poder público de algumas cidades brasileiras a adotar a internação compulsória, mesmo que isso tenha que ser feito à força, sem dar perspectivas para os moradores de rua e usuários de drogas que estão em situação de completo abandono e passam por problemas que vão muito além do vício. 

Esse desejo por “limpeza”, por parte da sociedade, não é novo, o que é novo é o suposto problema que demanda a higienização. É uma situação que se repete de tempos em tempos e fatalmente acaba em tragédia, principalmente para aquelas que sofrem as ações truculentas em favor de uma “cidade limpa”, livre do chamado "entulho social".

O psicólogo e conselheiro do Conselho Regional de Psicologia da 16ª Região (CRP16), Felipe Rafael Kosloski, explica como a mesma situação se repete em diferentes momentos históricos. “É o mesmo caso que ocorreu durante o período de internação compulsória dos pacientes portadores de hanseníase, que eram retirados à força do convívio em sociedade e levados para locais isolados, com o respaldo da lei”. 

A política de isolamento e internação compulsórios de pacientes portadores de hanseníase foi disciplinada e sistematizada no primeiro governo do então presidente Getúlio Vargas, entre os anos de 1930 e 1945. Foi neste período em que se concluiu a rede de asilos para os portadores no País e foi dado início à internação em massa dos pacientes.

A maior parte dos portadores de hanseníase dos hospitais-colônia foi retirada do convívio social ainda na juventude, de forma violenta, e permaneceu institucionalizada por décadas. O fim da internação compulsória só ocorreu oficialmente em 1962, mas registros atestam que ainda ocorriam casos na década de 1980. 

Em 2007 foi sancionada pelo então presidente Lula a Lei n° 11.520, oriunda da Medida Provisória (MP) 373/2007, que institui pensão vitalícia às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e internação compulsórios em hospitais-colônia até 31 de dezembro de 1986. No âmbito dos estados existe um movimento para indenizar filhos de pacientes de hospitais-colônia que foram retirados dos pais e enviados para instituições denominadas “preventórios”. 

O caso dos pacientes de hanseníase se assemelha em diversos pontos com a questão da população de rua, principalmente da dependente de crack. Para os dois casos a sociedade exige uma solução imediata, mesmo que ela não represente a solução para o problema. 

Felipe lembra que mesmo em uma democracia jovem, de menos de 25 anos, ainda há a tendência em se procurar uma solução imediata e ainda há grupos políticos que se aproveitam desse momento para propor esse tipo de solução, sem se importar com outras estratégias que contemplam a pessoa que está em situação de abandono – e consequentemente toda a sociedade.  Ele ressalta que uma política bem enraizada de educação, saúde, habitação e assistência social evita que essas pessoas saiam do convívio familiar e fiquem sem perspectivas. 

O conselheiro do CRP afirma que a internação compulsória não vai resolver a questão, entendimento que é respaldado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e por inúmeras entidades de proteção e defesa dos direitos humanos. “A internação compulsória deve ser usada como último recurso. É preciso ofertar outras opções para essa pessoa”. No entanto, ele alerta, o que vem sendo difundida é a ideia da retirada das pessoas do convívio em sociedade, sendo que existem outras políticas públicas que não são calcadas no imediatismo para o atendimento a essa parcela da população. 

Sobre a questão da população em situação de rua, o psicólogo lembra que esse desejo de “limpeza” parte de um mecanismo de exclusão. Ele lembra o caso do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, morto em 1997, depois de ter o corpo incendiado enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília. Ao serem presos, os jovens que atearam fogo no índio tentaram justificar a atrocidade dizendo que “pensaram que fosse um mendigo”, como se o ato se justificasse se fosse esse o caso. 

O que se depreende dessa histeria geral da sociedade cobrando a “solução do problema” e a internação compulsória das pessoas que moram na rua – e não necessariamente são viciados em crack, muito menos bandidos, assaltantes ou homicidas – é o desejo de estar em um lugar limpo e aparentemente seguro, até porque não são as pessoas em situação de rua as responsáveis pelas altas taxas de homicídios do Estado. Ainda, cobra-se que o aparato policial reprima essas pessoas, sendo que o vício na droga é uma questão de saúde pública.  

Ainda na seara da pretensa internação compulsória, não se sabe se o Estado e municípios têm retaguarda para internar os pacientes que seriam recolhidos. Quando o Estado não cumpre a parcela que lhe cabe, esse trabalho acaba sendo feito por entidades, geralmente ligadas a grupos religiosos que performam o tratamento, que não necessariamente preconiza o que estabelece o Sistema Único de Saúde (SUS). 

São Paulo

O promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Maurício Antônio Ribeiro Lopes, questiona o que chama de farsa da internação compulsória. Em artigo (O mês das ideias exóticas em SP) publicado em 10 de janeiro deste ano na revista Carta Capital, ele afirma que a internação compulsória aparece como pretexto de ser a única saída para “mães aflitas que buscam a proteção do Estado para seus filhos que estão mergulhados no submundo das drogas”.

O promotor lembrou que especialistas ouvidos no inquérito civil do Ministério Público evidenciaram duas conclusões: a eficiência de qualquer tratamento a usuários de droga está enraizada na adesão voluntária como premissa; as situações-limite que ensejam a internação compulsória (art. 6º, Lei n. 10.216/01), são em média 1% dos casos dentro da população alvo.

Em outro trecho do artigo, o promotor ressalta que s pessoas a quem o poder público só prestou histórico de abandono, a única alternativa à frente que se enxerga é a internação compulsória. “Seria apenas ridículo como política pública, não fosse desumano. O catatonismo da política social não se rompe pelo histrionismo higienista. Novas tentativas que levem a sacrifícios de direitos fundamentais serão coibidas com as armas da lei: de liminares à improbidade ‘e tudo o que houver nesta vida’ e nos tribunais. ”,  diz o artigo.

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