quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O descontrole e a violência contemporânea

 

Fonte: PSIQWEB em http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=351

Uma reflexão sobre mecanismos envolvidos na escalada da violência


| Forense | Colaboradores |

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Armando Correa de Siqueira neto*

Resumo

A violência contemporânea pode ser estudada pela combinação de alguns fatores essenciais, tais como as informações genéticas a respeito do impulso animal primitivo, as mais altas expectativas (que quando não atendidas, podem causar frustração, orgulho ferido, raiva e agressão) embasadas no inadequado autoconceito existente em muitas pessoas, a necessidade de fazer parte da “sociedade do espetáculo” cuja aparência alimenta ainda mais a equivocada impressão de si próprio, e do reduzido controle de certas forças sociais. Uma maior compreensão acerca de tal fenômeno permite a ideal autoavaliação e a revisão social da dinâmica de convivência sufocada pela espinhenta e descontrolada agressividade percebida diariamente.


Palavras-chave: agressividade, informação genética, autoconceito ilusório, sociedade do espetáculo, controle

Introdução

O imenso impacto causado pelas notícias sobre a violência percebida cotidianamente é capaz de nos deixar sem noção (além de preocupados) acerca da sua origem e, sobretudo, de sua provável diminuição. Então, somos meros animais que agem prontamente de modo descontrolado e brutal mediante situações que, se analisadas friamente, demandam apenas certa dose de controle e bom senso em nome das necessárias relações humanas? Note-se que a agressão é uma forma de expressão tipicamente humana (incluam-se também os surtos em casos psicopatológicos, a exemplo de certos transtornos de personalidade, além da raiva advinda de variados problemas emocionais mal resolvidos durante a vida, projetados no outro sem que se tenha a correspondente consciência a respeito), mas, aqui, o que se tem em mira, é o exagerado nível percebido no seu botão de controle. 

A propósito, até que ponto nós conseguimos nos controlar? Será que a fantasia da civilização ainda não convence os seus atores no palco da convivência social, embora o nosso passado não tenha sido fácil também? Para analisar o fenômeno da agressividade presente na vida contemporânea, será necessário considerar alguns fatores que, se combinados, podem sugerir um diagnóstico a respeito do descontrole que nos leva a explosões que vão de insultos a trágicos assassinatos.

A força biológica por trás da agressão

É fundamental levar em conta o poder da informação genética, a qual predispõe o homem à sobrevivência, ativando áreas cerebrais primitivas e importantes funções fisiológicas de maneira empenhada quando são percebidas situações de perigo (reais ou imaginárias). A natureza não brinca em serviço, e é capaz de iniciar uma tempestade adrenérgica (uma verdadeira chuva de substâncias químicas que nos fazem ficar alertas e prontos para a defesa e o ataque). De pacatos cidadãos, passamos, rapidamente, a perigosas criaturas. O genoma fala mais alto, e impõe toda a sua experiência tão duramente adquirida e armazenada nas pequenas letras do alfabeto biológico, o ACGT.

Convém observar, ainda, que: de um lado, a raiva pode ser mascarada por meio de um comportamento dissimulado, e em um momento oportuno, planejado, servirá de ocasião para uma eventual vingança, por exemplo. Coisa típica do ser humano que dispõe do pensamento. De outro lado, a raiva pode superar qualquer raciocínio, e a agressão ganhar terreno, qual uma besta descontrolada, sem limites, sem linha divisória entre o impulso e a contenção. A ausência de controle e a agressividade cega podem ser disparadas pelo evento ambiental: a fome com a vontade comer! Um conjunto de genes (e não o gene da violência, como alguns podem crer), se submete a uma probabilidade que pode disparar certos comportamentos agressivos. Portanto, a predisposição genética sempre estará à espreita, e as fichas apostadas na roleta da provocação podem resultar em assombrosos atos destrutivos. O bicho não morde, até que...

O ilusório autoconceito e suas consequências

Outro fator relevante é o exagerado grau de importância que damos a nós mesmos. Obviamente o bom autoconceito é um estimulante ao nosso desenvolvimento e preservação, mas refiro-me ao narcisismo desmedido, que leva à crença de que se é mais (e melhor) do que os fatos podem comprovar. Aqui, vale a pena introduzir as apreciações do pensador do Império Romano, Sêneca, que viveu há dois mil anos. Ele observou que o homem dá a si mesmo um valor altíssimo, que o leva a esperar dos outros um reconhecimento em troca. Ou seja, quanto mais o ser humano acredita que é importante (seja por possuir riqueza material, por usufruir de certo poder, por se achar mais inteligente), tanto mais esperará reverências condizentes com tais expectativas. E quando isso não ocorre, o orgulho ferido secreta seu veneno mais poderoso, a raiva. Uma onda de violência pode encobrir rapidamente a praia da civilização, um tsunami que pode arrastar para bem longe a educação e o respeito até ali disponíveis. A autoritária e pomposa vaidade, acima da conta, exige uma bajulação de qualquer súdito com quem entre em contato, e se ressente violentamente quando se percebe rejeitada. O reinado do orgulho sem medida cobra tratamento diferenciado, e, qualquer contrariedade será punida severamente.

A sociedade do espetáculo e o orgulho ferido

Após os quase dois milênios que nos separam de Sêneca, podemos recorrer a pesquisadores atuais, que apontam a mudança do “ser” para o “ter” por força da sociedade de consumo, agregando ainda mais informações ao caldeirão borbulhante da violência contemporânea. Em poucas palavras, tal transformação desencadeou uma corrida frenética à aquisição de bens (notadamente aqueles que demonstram poder, como casa, carro, roupa), pois a sua posse, crê-se quase religiosamente, é o que verdadeiramente traz a felicidade. No entanto, não se trata apenas de conquistar, mas de continuar conquistando o mundo material, com igual ou maior empenho, pois a tecnologia é capaz de tornar obsoleto o que antes era de ponta, e, a cada dia, mais rapidamente a corrida em busca do “ter” se intensifica.

Mas, houve um “deslizamento”, apontam tais autores, que levou a um novo movimento, o consumo do “ter” para o “parecer” (ou aparecer), caracterizando-se como “sociedade do espetáculo”, cujo objetivo principal é se parecer com o ideal apresentado (e imposto), destacadamente, pela mídia (o modelo ideal de família, de casa e decoração, de automóvel, de celular, de relógio etc). Segue-se, então, uma busca descontrolada do ser humano por atingir as aparências exigidas, a fim de manter-se parte do meio, do espetáculo. Sem falar no medo de se sentir a margem, fora do show, caso não se consiga manter os padrões de aparência. Ser feliz, na linguagem impensada atual, é parecer com o que é indicado; aparência por aparência, cada uma deve ser seguida a risca, sem nem ao menos dar tempo de degustar aquilo que é consumido, permanecendo de prontidão (para não perder nada, e não correr o risco de ficar de fora, qual as goladas de água para o sedento, ou, nos casos extremos, o ar que se respira) para as próximas trocas de aparência. Percebe a quão grande proporção chega tal fenômeno? Poder-se-ia classificá-lo como “Alienação Severa”?

O “possuir” e o “parecer”, com a sua gigantesca força de controle sobre os fieis consumidores de padrão e modismo, levam a uma inadequada sensação de importância, tão comumente percebidas em épocas anteriores, e, novamente, ao exagerado autoconceito e às correspondentes expectativas mediante as demais pessoas de convívio. Obviamente, a maioria de tais expectativas não será atendida, provocando respostas agressivas, carregadas de raiva por tamanha e permanente frustração. É o ego ferido. Sêneca, mais presente nos dias atuais, impossível!

Ainda, nos moldes da atual convivência, de um lado, com base na aparência de “ser” (melhor do que os outros), criou-se uma atmosfera de arrogância, cuja falta de respeito e educação mostram-se claramente através do tom agressivo e até esnobe com que uma pessoa (de qualquer classe social) se dirige a outra (em um supermercado ou no aeroporto, por exemplo), afinal a sua importância assim o requer, e, de outro lado, a intolerância de quem se sente humilhado (há casos em que basta apenas pairar uma impressão a respeito) faz disparar a raiva e o comportamento agressivo. Essencialmente, o negócio é “não levar desaforo para casa”, nem que para isso alguém leve um tiro fatal. Orgulho ferido, então, pode significar violência descontrolada, e morte. Ser importante cobra seu mais alto preço, a manutenção de uma reverência doentiamente exigente, capaz de por em risco a coisa mais valiosa, a vida, por força da coisa menos significativa, o orgulho ferido por bobagens tipicamente infantis, que nem as gerações vindouras serão capazes de compreender. Mais: note-se que certos agressores, diante das instituições de controle social, portam-se como verdadeiras criancinhas a mentir copiosamente com medo do castigo (se chegar a tanto!) que poderá lhes sobrevir.

Baixa dosagem de controle social

Há, ainda, outro fator a ser listado, o controle social necessário ao sustento da civilização, a contenção daquele que não observa as leis estabelecidas. O reduzido número de agentes de controle em relação ao imenso volume populacional (além da superlotação das prisões disponíveis, da corrupção e da impunidade claramente percebidas ao longo do tempo), dificulta o adequado controle por hora, podendo estimular muita gente a uma liberdade descompromissada com o respeito e a ordem, através de explosões agressivas tão comuns. Os limites fazem parte da arquitetura civilizatória, sem os quais a barbárie impediria o progresso de tamanha construção. Freud já havia apontado tal condição para a adequada convivência humana, além de indicar o preço a se pagar por tal empreitada.

É evidente que só o controle externo social (de fora para dentro) é incapaz de lograr êxito no projeto de convívio, mas ele é crucial enquanto não se alcança o controle interno pessoal, íntimo (de dentro para fora), pois, sem ele, a brutalidade estende os seus tentáculos egoístas e dificulta cada passo na direção de um maior altruísmo. Não se pode enxergar o bem comum sem antes entender que se faz parte do todo, e que há responsabilidades a serem cumpridas na parceria social.

É evidente que nem só de leis viverá o homem, mas delas ele carece em abundância, e de sua correta aplicação, criando a percepção de que o esforço altruísta vale o seu peso em respostas que favorecem a convivência. Mas é também através da educação familiar que se desenvolvem as regras pelas quais as sociedades se sustentam civilizadamente, com a introdução do universo moral, dentre outros itens, e o que se vê atualmente é um sem número de crianças e jovens distantes do ideal projeto educacional, haja vista muitos cuidadores terem de trabalhar fora, ou sequer estarem presentes, e, portanto, não poderem prestar o devido papel de educadores durante a convivência (embora seja percebido, isoladamente, certo nível de sucesso educacional em alguns casos, numa espécie de probabilidade lotérica), pois é no dia a dia que se operam os ajustes educativos que vão desde a permissão acerca de certos comportamentos até a sua total restrição, dependendo da compreensão que se tenha sobre a formação humana.

A aprendizagem e o esforço evolutivo

O conhecimento relacionado aos fatores internos e externos, antigos e atuais (ou revisados, e em nova roupagem), sobre a violência contemporânea, permite reflexões mais aprofundadas, além da consequente redução do autoengano sobre o ilusório autoconceito, capazes de abrir novos horizontes na forma de conviver socialmente, pois a compreensão superficial por hora predominante demonstra ser insuficiente para uma melhor e mais ágil adaptação evolutiva.

Há situações claramente difíceis (para não dizer impossíveis) a respeito do que é viável ou não (a dificuldade de se educar a pessoa no seio familiar, por exemplo), com as quais, em vários casos, não se pode contar, assim, torna-se premente estimular o ser humano, desde a sua juventude, a pensar acerca de si mesmo, e levá-lo ao autoconhecimento, seja através da escola, seja por meio de outras entidades que vislumbrem tal fim. Com efeito, pois, aprender sobre si mesmo, leva a um certo entendimento de quem é o outro. Nessa condição, é grande a capacidade de desenvolvimento da empatia, um estado tanto cognitivo quanto afetivo, que permite ao ser humano se colocar no lugar do outro e a se controlar mais, ao entender-lhe melhor, além de gerar o sentimento íntimo de ser ético.

É através da aprendizagem que se pode provocar o homem à autorrevisão, ainda que se saiba de antemão que mesmo sob os esforços estimuladores da educação, e com a recente descoberta (um estudo da Universidade Harvard) de que possuímos o mecanismo biológico de aquisição da moral (uma predisposição genética), os resultados podem ainda ser diferentes do esperado, haja vista dependermos da aleatoriedade do desencadeamento de certas respostas diante da combinação entre o que é inato e o que é adquirido.

Eis o esforço relacionado à evolução, o qual demanda saber (sobretudo o autoconhecimento), humildade, boa vontade e exercício diário, sem falar na persistência, pois sem ela, a acomodação se aconchega rapidamente no ninho da desistência fácil. É trabalho duro, é verdade, mas ricamente compensador.

Referências

COOK, Michael A. Uma breve história do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

DARWIN, Charles. A origem das espécies por meio da seleção natural. São Paulo: Escala, 2009.

DEBORD, G.A. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FADIMAN, James. Teorias da personalidade. São Paulo: Harbra, 1986.

FONSECA, Eduardo Giannetti. Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TAVARES, Leandro Anselmo Todesqui. A depressão como “mal-estar” contemporâneo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

VV.AA. Psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009.

WRIGHT, Robert. O animal moral: por que somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

*Armando Correa de Siqueira Neto é psicólogo (CRP 69637), psicoterapeuta nos Centros Médicos da Santa Casa de Mogi Mirim, professor e mestre em liderança, palestrante e autor e coautor de livros e artigos. E-mail: selfcursos@uol.com.br

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